Vivemos num Brasil curioso, desses que fariam Kafka abandonar a ficção para escrever editoriais. O cidadão que ainda guarda alguma ilusião sobre o que se chama de sistema de justiça, esse ente abstrato que deveria valer para todos, pode começar a acordar. Basta olhar com atenção para o comportamento de certos membros do Ministério Público, que operam com a delicadeza de inquisidores e a seletividade de quem escolhe vinho caro em supermercado gourmet.
A condenação recente da deputada estadual Cláudia Oliveira é exemplo típico desse jogo de cartas marcadas. Condenada pela Justiça Federal a inacreditáveis 8 anos e 9 meses de prisão e a uma multa de 120 salários mínimos por contratar um escritório de advocacia durante sua gestão como prefeita. Isso, curiosamente, faltando apenas 60 dias para as eleições de 2024, reforçando a suspeita de que interesses menos nobres e nada republicanos embasaram a teratológica decisão, posto que tal condenação, por certo, não deve sobreviver ao primeiro grau de recurso, tal a sua desproporcionalidade. O valor total do serviço? R$ 735 mil em sete anos. Algo em torno de R$ 8,7 mil por mês. O argumento do juiz: não houve licitação. Não se discutiu a qualidade do serviço, nem se houve superfaturamento. Apenas a licitação. Ponto.
A OUTRA FACE DA MOEDA
Agora, observe-se a outra face da mesma moeda. Familiares de um certo promotor da região, que ostenta ares de justiceiro moralista e faz questão de ser visto como guardião da ética, receberam ou recebem algo em torno de R$ 200 mil por mês de ao menos nove prefeituras do Extremo Sul baiano. Isso mesmo: R$ 200 mil mensais, R$ 2 milhões por ano. Jovens egressos da faculdade, sem especialização suficiente para justificar a dispensa de licitação, com contratos e recomendações copiadas de uma prefeitura para outra, como se fosse modelo de receita de bolo. E, veja só, até durante a pandemia, com prefeituras fechadas, receberam para acompanhar projetos de regularização fundiária. Valor total dos serviços em 7 anos, nada menos do que R$ 14 milhões.
Compare-se: R$ 8,7 mil por mês contra R$ 200 mil ou R$ 735 mil com R$ 14 milhões. Uma condenada, outros intocados. Nenhum escândalo. Nenhuma ação. Nenhuma investigação. A seleção é cirúrgica, como sempre. Contra uns, a lei é espada. Contra outros, é lenço umedecido.
INJUSTIÇA MASCARADA
E não se trata de defender Cláudia Oliveira. Ela é maior de idade, responsável pelos seus atos e deve responder por eles. O ponto não é esse. O ponto é o desequilíbrio. A incoerência. A injustiça mascarada de zelo pela coisa pública. O mesmo MP que fecha os olhos para os milhões de seus protegidos é o que ruge contra R$ 8 mil por mês. E a Justiça? Ah, essa assina embaixo, de olhos vendados – mas só quando convém.
Talvez a frase "onde passa um boi passa uma boiada" esteja mesmo atual. O problema é que a boiada não está passando para todos. Para uns, como acontece atualmente em Porto Seguro, é cancela aberta. Para outros, é tribunal.
E a gente, aqui do lado de fora, ainda insiste em chamar isso de Justiça.